Ontem (12/04), de forma atabalhoada, a ABRAMUS (Associação Brasileira de Música e Artes) organizou uma solenidade para o lançamento do CNCDA (Comitê Nacional de Cultura e Direitos Autorais). O local, o espaço Juca Chaves (no interior de um supermercado), foi mudado as pressas do local anteriormente previsto, o Teatro Frei Caneca. Também não havia necessidade de mais espaço, já que não havia ali mais de 150 pessoas, contando os palestrantes e a imprensa (contados a dedo). Na entrada me foi entregue um panfleto contendo o manifesto da entidade que ali estava sendo fundada. Pessoas bem vestidas e artistas globais, como Zezé Mota, se fizeram presentes para tentar dar algum fôlego ao evento.
Cena 1 – Construindo uma fábula
Logo na abertura foi cantado o hino nacional, exortando os mais profundos sentimentos nacionalistas. A cena cumpriria um papel no enredo conspiratório que se desenrolaria adiante. O apresentador, após chamar à mesa os diversos representantes da indústria, abriu sua fala afirmando uma posição suprapartidária e iniciando uma teoria conspiratória em torno das empresas de conteúdo e provedores de acesso à internet. Em seguida deu-se início a leitura de um manifesto que merece algumas considerações especiais, dado seu caráter lúdico.
Cena 2 – O manifesto conspiratório
Abaixo, o manifesto que foi lido na íntegra, com exceção dos dois últimos parágrafos, muito interessantes (clique na imagem para ampliar):
A fragilidade do texto acima dispensa comentários mais amplos, mas vale enfatizar alguns pontos, afim de que não se prevaleça o dito pelo não dito. No parágrafo 1, observa-se uma tentativa de atribuir aqueles interesses aos artistas sem que sejam mencionadas as grandes gravadoras e editoras que monopolizam os direitos sobre os conteúdos, demonstrando claro desconhecimento (ou dissimulação maniqueista) com relação às transformações tecnológicas em curso, além de menosprezar as “novas gerações, aptas a assimilar aquilo que lhes é dispo-nibilizado (sic) pelos provedores de internet”.
A teoria da conspiração continua no segundo parágrafo, afirmando que a “aptidão criativa do povo brasileiro, historicamente reconhecida, deter-minou (sic) uma verdadeira avalanche de assédios dos referidos provedores de con-teúdos (sic) em disseminar, principalmente aos inc-autos (sic), a idéia de flexibilizações, dirigismos, ingerências nos direitos e garantias individuais (…)”, reivindicando a inspiração dos direitos autorais nos direitos humanos, mas desconsiderando que também o direito ao acesso à informação está direta e explicitamente vinculado à educação, previsto na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que estabelece como princípios “a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”, bem como “o pluralismo de idéias e concepções pedagógicas”.
A teoria da conspiração segue no 4º parágrafo agora com o ataque àqueles que denominam “idealizadores da política flexibilizatória (copyleft, creative commons, free digital world)”, segundo o texto, “claramente atrelados aos interesses das empresas disponibilizadoras de conteúdo, por meio de novas tecnologias”, as quais (pasmem) “escolheram não por acaso, o Brasil para irradiar suas pretensões, de forma a afirmar que o direito dos criadores (…) e demais componentes da cadeia produtiva da cultura estão obstando nosso povo de ter acesso a tais conteúdos culturais”. Este discurso não encontra qualquer lastro na realidade ao observarmos, que, para além do fato destes movimentos se posicionarem diametralmente contra o monopólio das grandes corporações, historicamente, os grandes produtores de conteúdos no Brasil, a exemplo do UOL, constituíram-se atrelados aos interesses de grandes veículos de comunicação (Editora Abril e Jornal Folha de São Paulo), com interesses econômicos diretos na restrição de conteúdos protegidos. Inclusive, portais como o Terra e o UOL, mantêm diversos contratos em vigor com grandes gravadoras e editoras.
Os parágrafos 6º e 7º fazem elogios a lei em vigor (9.610/98) que, em termos, é mais conservadora que aquela promulgada em 1973 no âmbito da ditadura militar. Nos parágrafos 10, 11, 12, 13 e 14, pretendendo-se representantes da “sociedade civil” (sem que o evento contasse com qualquer participação dos estudantes, do meio acadêmico ou dos consumidores) posicionam-se contra a participação democrática realizada por meio de consulta pública, passando a apresentar, grotescamente, os fundamentos neoliberais da industria cultural, agora não mais defendendo um falacioso “antropocentrismo”, mas vislumbrando um lugar ao lado daquilo que denominam “nações civilizadas”, que se encontram em semelhante conflito com os direitos autorais, com a diferença de não apresentarem abissais desigualdades sociais como o Brasil.
Os parágrafos 15 e 16 não foram lidos ao vivo, mas gostaria de enfatizar talvez a única informação útil de todo o texto: “A arrecadação cresce cerca de 10% ao ano”, o que significa “mais dinheiro a ser repassado” e apropriado pela lógica rentista de acumulação dos intermediários da indústria cultural.
Cena 3 – Artistas longe dali
Após a leitura deste “manifesto”, iniciou-se a exibição de vídeos com artistas consagrados da indústria fonográfica (Roberto Menescal, Fagner, Augusto César; João Roberto Kelly, Sergio Reis e Zezé Mota) elogiando a atuação contemporânea do ECAD e falando sobre a importância dos direitos autorais para sua “sobrevivência”, chorando suas magoas, sem nada comentar, entretanto, sobre o peso absolutamente desigual dos intermediários (grandes corporações multinacionais) neste processo, as quais absorvem (ou detêm) a maior parte da receita arrecadada.
Cena 4 – O delírio conspiratório das entidades de representação da indústria
Nesta cena, o delírio conspiratório da indústria chega a seu ápice com claros sinais de desespero. Alternando-se entre o choro e o vazio dos argumentos contraditórios, levaram adiante a sua teoria conspiratória.
Thomas Roth, após enfatizar como seus interesses estão atrelados às grandes corporações multinacionais, falou que no Brasil os direitos autorais são desrespeitados, advogando em defesa da lei em vigor, sob o argumento de que outros países “invejam” nossas leis. Quem inveja nossas leis são as indústrias culturais de outros países! Temos em vigor no Brasil uma das leis de direitos autorais mais restritivas e conservadoras do mundo, pois embora a Convenção de Berna e o acordo TRIPS nos obriguem a proteger as obras por 50 anos após a morte do autor, o nosso prazo de proteção são de inexplicáveis 70 anos, reduzindo o espectro do domínio público em 20 anos. Ou seja, são 20 anos de produção cultural e científica que permanecem sob o monopólio abusivo de editoras e gravadoras, garantido pela subserviência voluntária da lei brasileira em vigor.
Dalton Morato, representante da ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos), exortou as entidades presentes a defenderem a lei em vigor. Com relação aos interesses desta indústria específica, é preciso observar que ela é amplamente subsidiada pelo Estado, notadamente no mercado de livros técnicos e científicos. São obras produzidas a partir de pesquisas financiadas por agências estatais de fomento e que estão impedidas de circular livremente. A ABDR está interessada em garantir uma fatia do bolo trazido com o crescimento vertiginoso do ensino superior público e privado nos últimos anos. Novamente, usou um argumento cansado em torno da qualidade da impressão original e o fato de estarmos “presenciando gerações de estudantes que se formaram com cópias de livros”, questionando a qualidade do ensino e a capacidade do estudante brasileiro que, sabemos, com muito esforço, sem condições de pagar os abusivos preços da indústria gráfica, fazem uso de fotocópias para alcançar o diploma.
Valter Franco, defendendo um (duvidoso) “amor à verdade”, adotou a linha alarmista e impregnada de elitismo cultural ao afirmar que o país encontra-se dividido: de um lado “os que têm tutano” (supostamente eles) e de outro “os que tutano não tem” (a sociedade?). Eu entendo diferente: de um lado “a sociedade libertando-se de algumas amarras em favor do bem público” e de outro “a indústria rentista dos detentores de direitos autorais defendendo a alta lucratividade de seu monopólio abstrato”. Ele também discursou em defesa da ética, da moral, da integridade e questionou onde estão os intelectuais e o porquê do silêncio. Talvez, a grande maioria dos intelectuais brasileiros (que pouco ou nada recebem em termos de direitos autorais), tenham mais o que fazer do que servir de instrumentos baratos desta indústria.
Plínio Cabral, representando a Câmara Brasileira do Livro, apesar de observar que a lei deva ser modificada quando a realidade se modifica, afirmou que a reforma do direito autoral está caminhando na contramão da história. Devemos observar que, se existe algo andando para trás, seria a industria de bens culturais, que tem adotado uma posição ludista e criminalizadora com relação às potencialidades culturais e educacionais trazidas pelas tecnologias da informação.
Marcos Vinicius Andrade optou por adotar uma linha que buscava criar uma suposta cisão interna no governo, fazendo acusações infundadas ao Ministério da Cultura e considerando inoportuna a elaboração do projeto de lei. Em seguida, fez novos ataques ao governo, levantando boatos em torno de uma possível rusga diplomática com o governo português, por conta de discordâncias relativas à política cultural.
Zezé Mota, sem nada a acrescentar, optou por cantar com uma bonita canção com uma bela voz, fechando o monólogo da indústria.
Cena 5 – Que democracia a CNCDA reivindica?
Em síntese, a liberdade que o CNCDA reivindica é a liberdade de crescimento de sua arrecadação em detrimento do bem público. A encenação orquestrada pela ABRAMUS não permitiu qualquer participação da reduzida platéia e para que a minha ida a não fosse uma total perda de tempo, resolvi escrever este texto.
Agora veja como foi notociado pela Globo!
Seria trágico, se não fosse cômico.
Agora elles querem se auto regulamentar e se auto fiscalizar. É isso?
Acho que temos que reagir a altura e denunciar este golpismo.
Informo que o movimento cineclubista está atento e prepara seu contra ataque.
ab
Pimentel
Obrigado Pimentel! Acho que nesse momento é muito importante que autores, compositores, professores, estudantes e todos aqueles que estão de algum modo interessados na democratização da cultura brasileira, se posicionem a favor da reforma. abç
Muito obrigado Pimentel, lucidez, transparência, boas idéias, é disso que estamos precisando,
Abraço
Parabéns Arakin, gostei muito do texto.
Abs
Há um texto de CRISTIANA GONZALEZ publicado no Cultura e Mercado:
http://www.culturaemercado.com.br/ideias/o-supermercado-da-cultura/
Arakin,
Valeu muuuuito pelas sensatas e lucidas colocações. Realmente essa “velha” indústria (que deve ter achado, anos atrás, que e internet, rede e outras ações eram brincadeiras de “malucos”)quer se apegar apenas ao controle e dinheiro fáceis, não querendo enxergar que o mundo mudou radicalmente com as novas tecnologias. Somos frutos de evolução (quer para o bem ou para o mal, vide fome, guerras, insustentabilidade, partidos políticos e outras atrocidades enferrujadas e controladoras do livre pensamento e cultura)e essa gente gananciosa (vestida de defensores de nossos “direitos autoriais”)não querem se modernizar e dividir melhor o que já é nosso. Abraços cordiais e paz! Cabeto Rocker- Musico/Produtor Cultural- Campinas/SP
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Ótima reportagem sobre o evento. O mundo está mudando e os setores conservadores estão desesperados, seja na política, seja na cultura.
Suas reações são patéticas, e não encontram coro na sociedade civil.
Mas somos milhões.
Como dizia a música: “cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei paus, cai… não fica nada”.
Venceremos.
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