Abaixo reproduzo na integra o relato do Observatório da Consulta Pública da Revisão de Lei de Direito Autoral:
Muitas reflexões sobre participação cidadã em processos políticos podem ser extraídas a partir das visualizações gráficas da base de dados da consulta pública do anteprojeto de lei de direitos autorais. Antes de qualquer análise, no entanto, vale notar que os gráficos foram gerados com base nas categorias “quantitativas” pré-estipuladas pelo sistema, o qual classifica as contribuições em duas dimensões: 1. propostas: alteração do texto de lei, acréscimo de artigo, parágrafo, alínea ou inciso, retorno ao texto da lei original e exclusão total do trecho e 2. opinião, dividida em “concordo com a alteração”, “não concordo” e “concordo com ressalvas”. As opções de “alteração” e “acréscimo” exigem o envio de um texto justificativo da posição.
Nesse primeiro levantamento, a Transparência Hacker não processou os conteúdos das contribuições “qualitativas” enviadas à consulta pública. Trabalhou apenas com os indicadores supracitados. Ainda assim, embora limitada, essa análise pode apontar algumas direções para as quais a consulta está caminhando e ajudar a melhorar o processo de sistematização que ocorrerá tão logo a consulta se encerre, no próximo dia 31.
O que se percebe, claramente, analisando os gráficos gerados, é a predominância da lógica “vale quem grita mais alto”. Isso é resultado direto de dois fatores, combinados: 1. a estrutura do sistema, que induzia por meio dos botões “quantificadores” os cidadãos a classificarem suas intervenções; 2. a ação de um dos grupos de interesse envolvidos no debate, o qual se aproveitou dessa configuração do software para “gritar numericamente”.
Softwares são escolhas políticas
No começo da consulta, o sistema criado pelo Ministério da Cultura permitia às pessoas contribuirem livremente, quantas vezes quisessem, constituindo assim um frágil sistema de “votação online”, que permitia a um mesmo usuário votar inúmeras vezes. Foi justamente essa escolha política, traduzida na interface, que deu espaço para uma ação articulada de um grupo de interesse contrário à reforma. Esse grupo se impõe não com o intuito de debater mas sim gerar volume, produzindo uma falsa sensação de representatividade.
No meio do processo, a prática foi coibida. Um aviso em letras vermelhas foi publicado no topo da página da consulta: “não será admitida mais de uma contribuição para o mesmo dispositivo. A contribuição mais recente irá substituir a anterior”. A medida adotada pelo Ministério da Cultura tinha por objetivo resolver a distorção gerada pelo mau uso do mecanismo de classificação, conforme relatos extra-oficiais que obtivemos. No levantamento feito identificamos, por exemplo, que um cidadão “contribuiu” 120 vezes com a consulta em cerca de apenas duas horas. Além disso, apenas 5 dentre os quase 700 usuários foram responsáveis por 650 comentários, o que corresponde a aproximadamente 11% de todos os comentários feitos no sistema.
Com a mudança, o Ministério tentou evitar uma prática nociva, mas acabou por restringir a possibilidade de diálogo entre aqueles que pretendiam aproveitar o espaço aberto para realmente ajudar na qualificação da proposta. Mapear demandas e receber contribuições da sociedade estão entre os objetivos de uma boa consulta pública. No entanto, a interação baseada em escolhas pré-definidas é limitadora do real potencial da rede. Acima de tudo, a internet é um poderoso instrumento de conversação e produção de entendimento. Portanto, em nossa avaliação, um bom dispositivo interativo de consulta política deve promover o debate e permitir diálogos. A limitação de um comentário por participante impede justamente que isso ocorra.
Outro argumento que comprova a fragilidade da opção “quantitativa” é que, até a semana passada, 680 pessoas contribuíram com a consulta. Trata-se de um número pouco representativo e, por isso, fica o questionamento em relação a essa lógica do “voto”.
O desafio de sistematizar as contribuições
Algumas outras perguntas podem ser feita com base nos gráficos que produzimos. Se o número de pessoas que entram no debate não é suficiente para ser representativo da opinião de toda a população, por que não deixar que o espaço seja apenas um lugar de troca de ideias? Se o objetivo é qualificar o processo, botões quantificadores são a melhor escolha? A mediação não seria mais efetiva se o julgamento do que deve ser feito com um determinado artigo ou parágrafo do texto fosse enviado exclusivamente dentro de uma lógica de argumentação?
As informações que deram origem aos gráficos dispostos neste site foram coletadas com um “bot”, um robô programado para puxar os dados disponíveis no sistema. Foi possível acessar os textos postados nos comentários (que ainda não foram trabalhados) e a sua distribuição pelos logins informados pelos usuários. Do que processamos até agora, é possível constatar que os maiores comentadores são aqueles que não concordam com a reforma da lei de direitos autorais.
Se por um lado a internet e as novas (e velhas) tecnologias, quando bem utilizadas, tendem a diminuir a distância entre cidadãos e governo, por outro, não constituem um valor em si. Nesse caso, em que é possível identificar alguns equívocos processuais, acreditamos que o desvio pode ser corrigido a partir do estabelecimento de um critério qualitativo para orientar o processo de sistematização das proposições. Ou seja, propomos o desenvolvimento de um mecanismo político de compensação da disparidade quantitativa. E o primeiro passo para que isso ocorra é realizar o processo de consolidação das contribuições de forma transparente.
Esse levantamento foi realizado pela comunidade Transparência Hacker com o objetivo de fortalecer o processo de revisão da Lei de Direito Autoral, ação importantíssima para garantir as práticas de compartilhamento de cultura e conhecimento que já ocorrem na internet, e ainda são criminalizadas pela lei em vigor – refletindo o interesse particular de alguns setores da sociedade, e não o interesse público.
Cabe também esclarecer que, na nossa avaliação, a realização da consulta em uma ferramenta baseada em software livre fortalece a transparência do processo, porque permite a todos nós, “cidadãos curiosos”, vivenciar a democracia em múltiplas e complexas camadas, gerando apropriações dos códigos binários e legislativos.