Abaixo reproduzo o artigo “Economia, cultura e criatividade: tensões e contradições” de Ruy Sardinha Lopes e Verlane Aragão Santos, publicado na Carta Maior.
A recente criação, no âmbito do Ministério da Cultura, da Secretaria da Economia Criativa vem coroar um esforço que, no tocante às políticas públicas, teve nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira o impulso decisivo para conferir à cultura um papel estratégico no desenvolvimento nacional. Inspirado no Ministério das Indústrias Criativas do governo britânico, cujas origens se remetem às ações do Departamento de Cultura, Mídia e Esportes (DCMS) do New Labour de Tony Blair e nos economistas liberais da cultura, como D. Throsby, da escola australiana, Gilberto Gil, à frente da pasta, afirmou que “a diversa e sofisticada produção cultural brasileira, além de sua relevância simbólica e social, deve ser entendida como um dos grandes ativos econômicos do país, capaz de gerar desenvolvimento” (1) . Em continuidade, a nova ministra, Ana de Hollanda, tomou a decisão, como um de seus primeiros atos, de nos pôr em sintonia “com uma necessidade do século 21”.
Os números apontados pelo negócio da cultura ou, como sugere Fredric Jameson, pela cultura do dinheiro não poderiam ser mais promissores: estudos do Banco Mundial estimam que a Cultura tenha respondido, em 2003, por cerca de 7% do PIB mundial. Nos Estados Unidos, respondia, em 2001, a algo em torno de 7,7%. Já no Brasil, segundo o ex-ministro Juca Ferreira, os números aproximam-se de 7% do PIB e 6% do emprego formal gerado no país. Acrescente-se a isso a vantagem de, numa época de cuidados redobrados com o planeta, tal atividade não estar assentada nos recursos finitos e cada vez mais escassos da natureza.
Otimismos à parte, a tese que conforma a cultura como ativo econômico reconhecendo, contudo, sua dimensão simbólica, traz uma contradição que tem sido insolúvel na história do capitalismo e que tem se objetivado no processo crescente de mercantilização da cultura cujos primeiros sinais foram captados na década de 1940 por Adorno e Horkheimer. O que causa surpresa, em sua mais recente edição, é uma certa redução deste conceito -própria a uma economia da cultura de matriz neoclássica, – operada pelo deslize semântico da cultura à criatividade.
Entre nós, já em 1978, Celso Furtado dispunha sobre o fato de que às necessidades de transformação do mundo físico requeridas pela acumulação passariam a estar submetidos os impulsos mais fundamentais do homem. Impulsos esses – como afirma o autor – gerados pela necessidade de auto-identificar-se e de situar-se no universo, e que são a matriz da atividade criativa, quais sejam, a reflexão filosófica, a meditação mística, a invenção artística e a pesquisa científica básica.
Embora o termo indústria cultural tenha vasta herança crítica, nos extramuros da academia se generalizou a acepção que o remete aos ramos industriais que, produzindo e comercializando conteúdos intangíveis e culturais, visam atender demandas massivas. Nesse sentido, as necessidades infraestruturais e operacionais do setor imporiam importantes barreiras de entrada, tornando-o propício a formação de oligopólios, como os observados na radiodifusão.
Mais afeitas às transformações tecnológicas tardias e às mudanças observadas nas esferas produtivas e de consumo as “indústria criativas”, assim como as teorias elaboradas para explicar as mudanças que caracterizam as sociedades industriais avançadas, teriam não só uma maior abrangência, pois albergariam as várias atividades que têm sua origem na criatividade, competências e talento individual, assim como, argumentam seus defensores, seria mais inclusiva, uma vez que seu desenvolvimento está baseado nos insumos “pessoais e inesgotáveis”.
Como sabemos no campo cultural as disputas semânticas são também uma forma de se fazer política de modo que nos cabe ressaltar a importância desta ênfase na criatividade. Em primeiro lugar, embora a criatividade seja um conceito complexo e multifacetado, envolvendo variáveis cognitivas, ambientais e de personalidade (EYSENCK, 1999), o que aqui, na economia criativa, se prioriza é, sobretudo, a capacidade de indivíduos ou grupos manipularem símbolos e significados com o intuito de gerar algo inovador (HESMONDHALGH, 2002), ou ainda, segundo Boston’s Creative Economy(apud SANTOS-DUISENBERG, 2008, p.58), como o “processo pelo qual as idéias são geradas, conectadas e transformadas em coisas valorizadas”.
Na asserção certeira de Schlesinger (apud BOLAÑO, 2010): “Em suma, as indústrias criativas são definidas por duas características fundamentais: São concebidas como atividades baseadas na criatividade individual quanto a sua capacidade de gerar propriedade intelectual (que é exportável) junto com o aproveitamento destas como base para a criação de riqueza e emprego. Nesse sentido, a definição britânica é economicista, pois a função comunicativa e simbólica de uma cultura – assim como a geração e comunicação de idéias – é interessante somente porque é exportável.”
A subordinação da criatividade à inovação – e à lógica dos Direitos de Propriedade Intelectual – implica não somente sua circunscrição a determinados arranjos institucionais, facilitadores dos processos de inovação, quanto seu direcionamento às demandas mercadológicas. Assim, como apontam Tremblay (2008) e Bustamante (2011), entre outros, a difusão internacional desse conceito tem também por objetivo inflacionar o volume de negócios “culturais” – incorporando, por exemplo, as indústrias de software e vídeo-jogos -, agigantando as estatísticas e o peso da cultura na economia.
Entende-se, desta forma, a eleição, também pelo MinC, de áreas estratégicas para “além das tradicionais indústrias criativas, como a gráfica de livro, fonográfica, audiovisual, etc. – há ainda outras áreas que foram crescendo, como moda, design, arquitetura.” (2)
Ainda que tal processo se ligue àquilo que a literatura vulgar em administração e em economia denomina de “capital intelectual da empresa”, isto é, ao modo, contemporâneo, do capital “se apropriar do trabalho social enquanto potência que transcende o mero trabalho individual ou mesmo o trabalho coletivo que possui força de massa, na apropriação das forças da natureza” (PRADO, 2005, p. 107), o deslocamento de uma prática social e coletiva – a cultura – para a esfera das capacidades individuais, revela-se como o outro nome do propaladocapital humano – as habilidades, capacidades e destrezas inatas ou adquiridas do ser humano que possuam valor econômico, segundo os economistas da Escola de Chicago.
Reducionismo – a subordinação do comportamento humano a termos econômicos – que, como notou Foucault, abria espaço para o surgimento de uma nova ética social: a forma-empresa como meio adequado de se organizar a própria vida (3). Recurso ideológico que, além de naturalizar aquilo que melhor se conforma como uma relação social complexa e contraditória, indica formas nada emancipatórias de subsunção do trabalhador-artista ou trabalhador-criativo (4).
É que além da subsunção do trabalho intelectual, necessário a esta nova fase da acumulação capitalista, ensaia-se cada vez mais neste setor novas formas de gestão baseadas naquilo que Pierre-Michel Menger vem chamando de “hiperflexibilidade da mão-de-obra”, traduzido pelo setor como “trabalho por projetos”. Transitoriedades, retração de direitos trabalhistas, enaltecimento das diferenças de remuneração, apologia da concorrência interindividual, auto-emprego, vistos agora, com sinal invertido, como legítimas formas de se valorizar e remunerar os talentos individuais, a criatividade do trabalhador precarizado.
Não é só com o amálgama entre alta performance econômica e precarização do trabalho que a nova gestão ministerial terá de se avir. Bouquillion, Miège & Moeglin (2010) ao analisarem o não protagonismo do termo anglo-saxão em território francês levantam mais alguns aspectos que podem vir a orientar uma reflexão crítica em relação à eleição da “Economia Criativa” como um dos eixos estruturantes da atuação do Ministério da Cultura no Brasil. A primeira refere-se aos desdobramentos das sutilezas semânticas quando do uso da denominação indústrias criativas em substituição à de indústrias culturais. Em alguma medida já nos referimos a isto em momento anterior desse artigo.
Ademais, ainda são bastante incipientes, continuam os autores, as informações sobre os aspectos usuais relativos às indústrias criativas, como dos resultados econômicos na Inglaterra, o que não permitiria ter uma avaliação concreta em termos dos impactos de tais políticas. Por fim, tal amálgama traz à tona um importante problema teórico e estratégico: o das relações entre a promoção e gestão da criatividade e a reticência dos produtores culturais e artísticos em nortear sua atividade segundo tais princípios. E também o sentido inverso.
Não é nosso interesse, nem dos autores acima citados, pregar a manutenção da dicotomia entre produtos culturais mercantilizáveis e não mercantilizáveis, recaindo portanto numa espécie de fetichismo cultural, mas sim afirmarmos a importância de um debate não reducionista capaz de mediar ações e políticas ministeriais
Por acreditarmos que cabe à política cultural, no seu sentido mais amplo, superar o viés funcionalista da cultura e o estrito comprometimento com as dimensões do financiamento e gestão da cultural, pondo em circulação e debate os diversos campos simbólicos que compõem a atividade cultural, entre eles, sem dúvida, mas não somente, aquele que articula a produção simbólica e os processos de acumulação capitalista é que afirmamos a necessidade de atentarmos para tais deslizamentos semânticos e repor a cultura, o capital e a democracia num campo de tensões recíprocas.
(*) Ruy Sardinha Lopes é Professor Doutor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos Doutor em Filosofia e presidente da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura, capítulo Brasil (ULEPICC-Br).
(**) Verlane Aragão Santos é Professora Adjunta do Departamento de Economia da UFS e Doutora em Desenvolvimento Econômico pela UFPR. Associada da ULEPICC-Br e atualmente membro de sua diretoria.
(1) Em artigo publicado na Folha de São Paulo, de 03/02/2008, em co-autoria com a coordenadora do Programa de Desenvolvimento da Economia da Cultura (Prodec), Paula Porta. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/2008/02/03/economia-da-cultura-2/.
(2) Conforme entrevista da Ministra da Cultura, Ana de Hollanda, ao Jornal Brasil Econômico em 02/02/2011. Disponível em http://www.culturaemercado.com.br/noticias/politica/ana-de-hollanda-fala-sobre-a-secretaria-de-economia-criativa/
(3) Ver a esse respeito o verbete capital humano em Enciclopédia Intercom de Comunicação, vol.1, disponível em http://www.fundaj.gov.br/geral/ascom/Enciclopedia.pdf
(4) Bolaño (2010) chama a atenção para a necessidade de uma crítica interna à economia criativa, crítica essa que reponha a condição objetiva em que tal conceito aparece deslindando, a um só tempo, as especificidades do trabalho acionado por tais práticas e os modos de sua subordinação ao capital. Embora tal crítica venha sendo realizada, sobretudo no âmbito da Economia Política da Comunicação e da Cultura, ultrapassa os limites desse artigo, cabendo-nos somente apontá-la.
Referências
BOLAÑO, César. (2010). Indústria, criatividade e desenvolvimento. Texto apresentado na I Conferência Internacional de Economia Criativa do Nordeste – Anima.Cult, 8 a 10 de dezembro de 2010, Fortaleza – CE. Mimeo.
BOUQUILLION, Philippe, MIÈGE, Bernard, MOEGLIN, Pierre. (2010). La situación de la industria creativa. TELOS – Cuadernos de Comunicatión y Innovación, n. 86, 2010. Disponível em: http://sociedadinformacion.fundacion.telefonica.com/DYC/TELOS/REVISTA/Autoresinvitados_85TELOS_AUTINV1/seccion=1214&idioma=es_ES&id=2010110309270001&activo=7.do
BUSTAMANTE, Enrique. (2011). La creatividad contra la cultura? In:
ALBORNOZ, Luis Alfonso (editor). Poder, medios, cultura. Una mirada crítica
desde la economía política de la comunicación. Buenos Aires: Paidós (no prelo).
EYSENCK, Hans J. (1999). As formas de medir a criatividade. In BODEN, Margareth (Org.), Dimensões da Criatividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
FURTADO, Celso. (2004). Criatividade e Dependência na civilização industrial. São Paulo: Companhia das Letras.
HESMOLDHALGH, David. (2002). The Cultural industries. Londres: Sage Publications.
MENGER, Pierre-Michel. (2005). Portrait de l’artiste em travailleur. Éditions Du Seuil,
PRADO, Eleutério. (2005). Desmedida do Valor. Crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã.
TREMBLAY, Gaëtan. (2008). Industries culturelles, économie creative et societé de l’ information. Global Media Journal – Canadian Edition, Vol.1. issue 1.
SANTOS-DUISENBERG, Edna. (2008). Economia Criativa: uma opção de desenvolvimento viável? In REIS, Ana Carla. (Org.). ECONOMIA CRIATIVA como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos paises em desenvolvimento. São Paulo, ITAÚ CULTURAL.
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